28 de março de 2024
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Os sobreviventes do massacre de Realengo

Quatro anos depois da tragédia que assombrou o País, as vítimas contam histórias de superação, dor e revolta

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Os disparos parecem ainda ecoar em Realengo, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, cenário de uma tragédia que horrorizou o Brasil. Em 7 de abril de 2011, o ex-aluno Wellington Menezes de Oliveira, 23 anos, passou tranquilamente pela portaria da Escola Municipal Tasso da Silveira. Na seqüência, vieram momentos de pavor, com crianças banhadas em sangue, que traumatizaram o País. Nos quase 12 minutos em que descarregou os dois revólveres, de calibres 32 e 38, comprados meses antes para o objetivo macabro, Wellington ceifou a vida de doze estudantes e deixou 17 feridos. Quatro anos depois, ISTOÉ voltou ao bairro. Dentre os quatro sobreviventes que levaram tiros, uma garota ficou paraplégica, um menino perdeu a visão de um olho e os outros lidam com sequelas menos drásticas. Os familiares também foram atingidos. Duas mães enfrentam graves desequilíbrios emocionais, pelo menos três parentes sofreram infarto, sendo um deles fatal. Já a escola escolheu o pior caminho, segundo especialistas: adotou a lei do silêncio.

Thayane Tavares, hoje com 17 anos, era uma assídua praticante de atletismo antes de três balas se alojarem em sua coluna vertebral e deixá-la paraplégica. Impressionante exemplo de superação, a jovem continua atleta e hoje faz canoagem. “Não vou parar minha vida por estar em cima de uma cadeira de rodas. Tive os sonhos adiados, mas ainda os tenho”, afirma a aspirante a advogada que aguarda ansiosa pelo próximo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Atualmente, ela faz progressos na fisioterapia e acredita que voltará a andar.

O boné, que há quatro anos não sai da cabeça de Luan Santos, 17, esconde a cicatriz que lhe percorre o crânio. Ele ficou cara a cara com o assassino, que colocou a arma em sua face e atirou duas vezes. Uma bala atingiu seu olho direito e o cegou. O garoto perdeu massa encefálica, enfrentou três cirurgias e a depressão, mas emergiu. Afirma que, mais do que nunca, gosta de comemorar seu aniversário, no dia 29 e março, jogando futebol com amigos. Apesar de reconhecer que nunca conseguirá esquecer o horror que viveu, Santos diz ter enfrentado o trauma com o apoio dos amigos, da família, de terapia e de “ajudinhas especiais”, como a visita dos ídolos Ronaldinho Gaúcho e Cafu ao hospital. O antigo bom aluno acabou repetindo dois anos do colégio. Hoje, quer mais é que venha o futuro. “Serei engenheiro. Gosto muito de matemática e química. E, o que quero, consigo.”

Apesar das jovens vítimas lutarem para seguir em frente, a memória da tragédia é patente. Edson Clayton, 18, não esquece cada detalhe dos minutos de agonia passados no chão da sala de aula onde permaneceu deitado com duas balas no abdômen e uma no maxilar. “Estava na primeira sala em que ele entrou. Não atirava a esmo nem demorava, mirava e logo apertava o gatilho. Não escolhia ninguém, era quem estivesse na frente. O último tiro que levei foi cara a cara. Depois disso fiquei encolhido com muita dor, mas não apaguei.” Ao completar a maioridade, neste mês, ele teve acesso à indenização concedida pelo município e pretende comprar uma casa com o dinheiro. De resto, o fatídico 7 de abril mudou sua forma de encarar a vida. “Hoje penso mais nos outros e vivo intensamente”, diz Clayton, que alimenta o sonho de ser paraquedista do Exército.

Duas ex-alunas, Bruna Lopes, 16, e Tainá Bispo, 19, viveram experiências similares. Conseguiram escapar dos disparos, mas ficaram com sequelas emocionais por perderem pessoas muito importantes. Tainá machucou a coluna ao cair na escada perto do atirador, mas não levou tiro e fugiu. Porém, sua irmã mais nova, Milena, então com 14 anos, morreu. “Ele me tirou a irmã e também a inocência da infância. Passei a ver o mundo de forma fria. É triste admitir isso, mas me tornei uma pessoa seca”, diz. Já Bruna estava no terceiro andar do prédio e precisou correr muito com outros 40 estudantes para fugir das balas. Todos se comprimiram em uma sala que teve a porta trancada e bloqueada por móveis. “Quando o policial bateu, entramos em pânico por achar que era o assassino”, lembra. Ao sair, porém, soube que a melhor amiga, Géssica Guedes, 15 anos, tinha falecido. O golpe levou Bruna a precisar de tranquilizantes para manter a rotina.

Segundo a psicanalista carioca Monica Donetto, o tempo e a reação de cada pessoa frente a um trauma com este grau de violência podem variar muito. “As relações familiares e as experiências prévias, em geral, ditam a reação. Se era uma criança protegida no seio familiar e que não presenciava eventos mais fortes, o choque pode ser maior”, afirma. Para enfrentar o luto e se ajudarem mutuamente, as famílias envolvidas na tragédia criaram a Associação Anjos de Realengo. Hoje, a instituição carrega bandeiras como a conscientização dos profissionais de educação para identificar alvos de bullying — por este motivo, o assassino teria voltado à sua ex-escola em um funesto acerto de contas — e a presença de psicólogos e seguranças em todas as escolas.

Adriana Silveira, presidente da associação e mãe de Luiza Paula, uma das vítimas fatais, encontrou forças na causa pela qual agora dedica a vida. “Confesso que machuca saber que nenhuma providência foi tomada para que a morte deles não fosse em vão. Ainda não há proteção nas escolas”, afirma. “Ao se matar, ele nos tirou até a possibilidade de brigar por justiça.” A criação de uma associação ou similar é a melhor ferramenta para seguir em frente, aponta Andréa Junqueira, coordenadora do grupo de estudo independente Formação Freudiana. Suely Guedes, mãe de Géssica, confirma. “Só eles entendem completamente a minha dor.” Segundo a psicanalista, a pior coisa a se fazer é transformar o assunto em um tabu. “Quem sofreu diretamente vai viver com esse fantasma e precisa conversar. O luto tem que ser vivido para se construir possibilidades de reagir e lidar com o trauma.”

Contrariando as indicações dos especialistas, o massacre que arrasou a escola em 2011 se tornou assunto proibido dentro da Tasso da Silveira. Em um sarau, no ano passado, uma das alunas iniciou uma homenagem aos colegas mortos e o microfone teve o som cortado abruptamente. Ao final, ela teria sido repreendida pela diretoria. “Disseram que os nomes daquelas crianças não deveriam ser falados dentro do colégio”, disse uma testemunha à ISTOÉ, que não pôde entrar nas dependências da instituição e foi informada que a atual diretora não dá entrevistas.