28 de março de 2024
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Cesp-Porto Primavera: ambientalista que se imolou defendia privatização

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Ninguém poderia imaginar naquele 13 de novembro de 2005 que Francisco Anselmo Gomes de Barros, o Francelmo, um homem consciente de seus deveres de cidadão, absolutamente comprometido com as causas democráticas, incondicional e atuante defensor do meio ambiente, cometeria o gesto extremo de tirar a própria vida. Em pleno dia, em frente ao Bar do Zé, um dos pontos mais movimentados do centro de Campo Grande, enquanto participava de um protesto contra um projeto do Governo abrindo a Bacia do Alto Paraguai às usinas de álcool, pegou dois colchonetes de uma VW Kombi, derramou gasolina, deitou-se sobre eles e ateou fogo.

“ÚNICA FORMA” - Francelmo era presidente da Fundação para a Conservação da Natureza de Mato Grosso do Sul (Fuconams), uma das ONGs mais respeitadas do País na área ambiental. Com 100% de seu corpo queimado, morreu sem fazer segredo dos motivos. Indignado após sucessivas mobilizações contra agressões à natureza – entre as quais a lei das usinas, a pesca predatória e os impactos causados pela construção da Hidrelétrica Sérgio Motta (Porto Primavera) -, havia confessado a um companheiro de lutas, Alessandro Menezes: “Esta vai ser a única forma de acordar esse povo”. Estava desiludido com as inúteis tentativas dele e da sociedade de convencer os governantes a tomar atitudes mais incisivas em favor da sustentabilidade.

Quase nove anos e meio depois da imolação de Francelmo, praticamente todas as angústias do ambientalista continuam acesas no cenário sócio-desenvolvimentista do Estado. As usinas de álcool não tomaram conta do Pantanal. Mas, beneficiadas pelos incentivos fiscais e uma legislação amena, as indústrias sucroalcooleiras espraiaram-se quase sem limites nas diversas regiões sulmatogrossenses, ocupando áreas que eram ou seriam destinadas à produção de alimentos. A questão indígena, outra preocupação do ambientalista, permanece inalterada quanto à busca de soluções – na verdade, a situação de algumas populações indígenas agravou-se mais em função da demora na definição da política de demarcações.

SEM REPOSIÇÃO - Os estragos causados à natureza pela alagamento deixado como herança da obra de Porto Primavera, no Rio Paraná, acumulam-se em 30 anos, esculpindo um prejuízo cuja reposição, já se sabe, é impossível. A dívida da Companhia Energética de São Paulo Cesp) não pode ser quantificada com exatidão, tendo em vista os incalculáveis danos aos patrimônios ambiental, arqueológico e sócio-laboral presentes na inutilização econômica de boa parte dos 225 mil hectares inundados, onde a agricultura familiar e outras atividades de subsistência fixavam centenas de famílias.

O desaparecimento de um sítio arqueológico e a destruição de um rico e imenso ecossistema completam o contencioso que tanto revoltou Francelmo, a ponto de, em várias ocasiões, inconformado com a minimização desses impactos pela Cesp, propor a privatização da estatal paulista. Em artigo publicado pela “Folha de São Paulo” em 29 de julho de 1998, ao observar que os ambientalistas haviam perdido a batalha, Francelmo escreveu: “Já que não conseguimos nem ter duas turbinas gerando energia, só nos resta correr atrás da privatização da Cesp. Cabe-nos, como alternativa, comprar ações da nova empresa ou fazer alguma associação”.

Este ano, mais uma Comissão Especial está instituída pela Assembleia Legislativa com o objetivo e acompanhar as negociações entre os estados de Mato Grosso do Sul e São Paulo. O governo sulmatogrossense exige reforço nas indenizações e novos cálculos para compensar os diferentes prejuízos causados pela obra, iniciada entre 1980 e 1990 e só concluída 18 anos depois.

Confira o artigo de Francelmo na “Folha” de 29-07-1998

“O MS e Porto Primavera

Francisco AG de Barros
Concebida em 1973, a hidrelétrica de Porto Primavera fazia parte do pacote de obras faraônicas do governo e só foi parcialmente deixada de lado pela euforia da inauguração de Itaipu. Planejada em 1980 para custar US$ 1,4 bilhão, a usina custará agora, na inauguração, quase US$ 10 bilhões.

Enquanto essa odisséia se desenvolvia no Estado de São Paulo, Mato Grosso do Sul a ignorava solenemente. Por força de lei, em 1987, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente/MS recebeu o diagnóstico dos impactos ambientais. A partir daí, começou a se inteirar da briga econômica e política desproporcional dos Estados.

Não podemos deixar de louvar o heroísmo e a garra de todos os técnicos que estiveram acompanhando esse processo até o fim. Se Mato Grosso do Sul perdeu, não foram eles os culpados. Houve grande falta de visão dos nossos políticos.

Cada governo eleito designava um representante para acompanhar o processo; quando mudava o governante, mudava também o interlocutor. Tivemos de retomar várias vezes o diálogo com cada novo governo sul-matogrossense e com a Cesp, que também constantemente mudava de diretor.

Por aí se vê a pequenez com que o problema foi encarado. O Estado só teve como recompensa mais importante algumas toneladas de barro para os oleiros da região, apetrechos de pesca e repovoamento de casas para os habitantes das áreas a ser inundadas, além de algumas obras de infra-estrutura.

Ganhamos mais um grande desastre ecológico da história do Brasil: a transformação do rio Paraná numa grande lagoa. Porto Primavera irá alagar três quartos dos municípios atingidos (só um quarto deles está em São Paulo). Mato Grosso do Sul perde uma área quase do tamanho de Brasília.

Em março de 1993, foi acertado que Mato Grosso do Sul receberia pelas perdas US$ 112 milhões. Até hoje, só recebeu US$ 267 mil, fora o prejuízo ambiental. Com o não-cumprimento dos acordos, o fechamento das comportas foi suspenso por ordem judicial.

Se os ambientalistas perderam a batalha, a sociedade perdeu muito mais. Geográfica, federativa e politicamente, somos donos da metade do rio Paraná. Onde estão nossa força política e nosso irrestrito apoio ao governo federal? Por causa de poucos metros de território paraguaio, o país vizinho detém 50% das ações de Itaipu.

Já que não conseguimos nem ter duas turbinas gerando energia, só nos resta correr atrás da privatização da Cesp. Cabe-nos, como alternativa, comprar ações da nova empresa ou fazer alguma associação. Só assim o Estado poderá ser auto-suficiente em matéria de energia elétrica para os seus projetos de desenvolvimento futuro.”