19 de abril de 2024
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HOMOFOBIA | CAMPO GRANDE

Quem matou o cirurgião dentista Gustavo Lima?

Rapaz era voluntário no enfrentamento a Covid-19, quando foi alvo de ataque homofóbico

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O cirurgião dentista Gustavo dos Santos Lima, conhecido apenas como Gustavo Lima, de 27 anos, foi achado morto no seu quarto na madrugada desta quinta-feira (14.out.21). Num boletim ocorrência, a suspeita da polícia é que ele tenha cometido suicídio, mas a meu ver, ele foi brutalmente assinado. 

Gustavo era um profissional da saúde e foi voluntário durante o enfrentamento a Covid-19, atuando na vacinação da população. Durante o trabalho, no dia 21 de agosto de 2021, no drive do Albano Franco, na Capital sul-mato-grossense, ele foi atacado por uma mulher, que desumanamente, disse que não permitiria que ele vacinasse a sua filha. O motivo? Ela disse que não queria que a filha fosse vacinada: “Por esse tipo de gente. Um viado".

O rapaz, conhecido por todos pela sua vasta humanidade, seu carinho com outro e como um ser humano de extrema sensibilidade, fazia tratamento psicológico para lidar com a crueldade humana, lidar com sua estada em um Estado extremamente homofóbico, sobreviver em um país imerso no ódio, que vibra com o massacre das ditas minorias (apenas em poder), um povo que destoa daquilo que lhe define: a humanidade. 

Depois de ser violentamente agredido pela mulher ainda não identificada, o cirurgião foi acolhido pela mãe, Tânia Mara Lima. Ela o ajudou a denunciar a agressão à polícia. “A gente não quer vingança, a gente quer só que a pessoa responda pelo crime que cometeu", disse Gustavo na época que registrou boletim pelo crime de homofobia. O caso teve grande repercussão e vinha sendo desde então investigado. A polícia, porém, ainda não chegou à suspeita. 

Desde agosto, o quadro depressivo de Gustavo se agravou, diante do sofrimento psicológico provocado pela rejeição a sua orientação sexual, até aqui impune. Portanto, nesta madrugada Gustavo não tirou a própria vida e sim a tiraram dele.   

“Causa-nos indignação o triste fim da existência de um jovem trabalhador, pessoa digna, profissional dedicado e competente, espírito altruísta e amoroso”, manifestou o deputado estadual Pedro Kemp (PT-MS).

“Perdi a minha vida, perdi tudo o que eu tinha, se alguém tivesse a oportunidade de ter um irmão como ele, eu queria que todo mundo tivesse um pouco do Gustavo”, externou o irmão de Gustavo, Adriano Lima, de 34 anos, ao site Campo Grande News. Foi Adriano que achou o corpo do irmão no quarto. Eles viviam com os pais, no Bairro Rita Vieira.

“Causa-nos revolta em saber que nada foi feito para que a mulher que praticou o crime de homofobia fosse identificada e punida. Inadmissível que a Secretaria Municipal de Saúde não tomasse as providências necessárias para investigar o caso e desse todo o apoio ao profissional de saúde para superar o problema. Causa-nos tristeza ver que na sociedade ainda temos muitas pessoas que não conseguem conviver e respeitar a diversidade própria dos seres humanos, não conseguem enxergar a pessoa humana por trás dos rótulos, não têm capacidade de reconhecer a dignidade inerente a todas as pessoas. Quando é que vamos aprender a viver fraternalmente, decentemente, de forma respeitosa com as pessoas, valorizando a vida, cultivando sentimentos de compreensão e amor ao próximo, independente das diferenças de cor, raça, crença, pensamento, orientação sexual? Ninguém pode ser vítima de qualquer forma de violência, seja contra sua integridade física ou moral, nem de qualquer situação que diminua sua dignidade”, completou Kemp.

Depois da morte do jovem a delegacia disse que a investigação segue normalmente e que o atestado de óbito será anexado ao inquérito. O boletim de ocorrência pela morte do rapaz deve tramitar na delegacia do Bairro Rita Vieira e, caso haja informações que interessem ao caso de homofobia, elas podem ser juntadas, recurso que se chama “prova emprestada”.

A vereadora campo-grandense Camila Jara (PT) também se manifestou acerca da morte de Gustavo. Camila trouxe a baila dados colhidos por sua equipe. “A cada 28 horas, alguém morre por homofobia no Brasil. Hoje, quem nos deixou foi o Gustavo - um profissional da saúde que foi vítima de homofobia enquanto trabalhava como voluntário na vacinação contra a Covid-19. Não podemos ficar parados diante de tamanha injustiça. Não podemos aceitar que pessoas percam a vida por serem quem são. Não podemos admitir a homofobia! É urgente batalharmos por políticas públicas para evitar dias tristes como o de hoje. Gustavo, presente”, apontou a vereadora. 

A Secretaria de Saúde, emitiu uma nota de pesar e disse se solidarizar a família classificando a morte de Gustavo como "repentina". "A Sesau lamenta profundamente a morte repentina do dentista Gustavo dos Santos Lima, de 27 anos na madrugada desta quinta-feira (14). Gustavo era residente da USF Coophavilla II e atuava também na frente de vacinação contra a Covid-19 em Campo Grande. Em suas publicações nas redes sociais se mostrava realizado e satisfeito com o trabalho que vinha realizando no apoio à saúde da população do município. A secretaria se solidariza com a dor de amigos e familiares e também sofre por esta perda tão dura", disse. 

O secretário de Saúde, Geraldo Resende disse que na semana passada, o mundo falou sobre o Dia da Saúde Mental... enquanto isso, vimos na nossa capital, a perda de vidas importantes para uma doença que começa silenciosa e de tamanha gravidade, tira o desejo de viver: a depressão. "Mais uma perda dolorosa e precoce, nesta quinta-feira, que começou com tempestade no céu e também nos corações de amigos e familiares do cirurgião dentista, Gustavo Lima, de apenas 27 anos, que tamanha sua grandeza, comoveu todo o país ao enfrentar um ataque homofóbico enquanto ajudava a salvar vidas sul-mato-grossenses, na fila da vacina contra o covid-19. À família, aos amigos e aos colegas de profissão, meus mais sinceros sentimentos. E, à todos que estejam passando por um momento de tristeza e solidão, peçam ajuda, compartilhem sua dor aos profissionais de saúde, às suas famílias, na certeza de que serão acolhidos", disse Resende. Ele ainda compartilhou contatos de ajuda de profissionais de sáude mental (veja no final do texto). 

Por fim, manifestou-se o chefe da Secretaria Municipal de Saúde (Sesau), orgão público onde Gustavo trabalhava. José Mauro de Castro Filho cobrou celeridade nas investigações do crime. “Hoje é um dia muito triste para todos que acreditam na vida, no amor. Gustavo, odontólogo, perdeu sua vida por não suportar o preconceito e a homofobia na sociedade em que vivemos. Que Deus de alguma forma conforte sua família e receba ao seu lado. Que a justiça não deixe de ser feita!”, publicou.  

CRÔNICA DE UM "HOMEM DE FAMÍLIA"

Era uma nublada tarde de terça-feira, quando, por volta das 16h30, eu pedi um carro em um aplicativo de transporte com o objetivo de me locomover do Centro da Cidade até o Bairro Coronel Antonino. 

O motorista, que devia ter entre 45 e 60 anos, um homem branco,  com a voz empostada, usava shorts jeans e camiseta, me cumprimentou, respondi, entrei no carro e seguimos.  

Após alguns metros, eu que mexia no celular fui provocado a dar atenção ao motorista. "Tá quente demais hoje, né?", disse ele. Eu notei de imediato que ele queria conversar, então guardei meu celular e respondi: "Sim, bem quente, mas acho que vai chover...". Ele, então, acenou positivamente com a cabeça. 

Dentro do veículo, um noticiário no rádio falava sobre a situação de uma pessoa que foi vítima de homofobia, pelo retrovisor notei que ele [motorista] chacoalhava a cabeça negativamente. "O senhor está bem?". Ele que parecia aguardar a minha pergunta emendou em uma resposta: "Eu estou sim. É isso aqui que estou ouvindo. Essas pessoas assim... elas ficam se mostrando, por isso dá nisso aí"... eu o interrompi. "Como assim, se mostrando? Vivendo, o senhor quer dizer?"... "Não, não é isso não. É até ruim de falar, porque pode parecer que eu não gosto. Olha, eu não tenho nada contra, se a pessoa quer ficar com quem ela quiser, agora imagina se estou na praça com a minha filha adolescente e ela vê duas mulheres ou dois homens quase que se... [gesticulou cruzando os dedos] ah sei lá, não gosto disso", comentou. 

Diante daquele motorista notadamente homofóbico eu questinei se caso a filha dele "adolescente" presenciasse alguém trocando carinhos com outra pessoa do mesmo sexo, se na opinião dele, ela seria de alguma modo (como se isso fosse possivel) influenciada. "Eu não tenho certeza disso, mas eu acho que sim. Cara eu sou pai de família. Acho feio isso aí, está ok. Eu não sou homofóbico, porque lá no meu prédio tem um casal, que todo mundo sabe que elas duas ficam juntas, mas ela são na delas, sabe?... Quero dizer, elas não ficam andando de mãos dadas na rua é uma coisa que tem que ser reservado", opinou aquela figura.

A esse ponto nos aproximávamos do meu local de desembarque. Me adiantei para o dizer que sim ele era homofóbico. "O senhor é muito, muito homofóbico...", fui interrompido. "Chegamos rapaz, desce aí  e tenha uma boa tarde", completou ele. 

Eu desci do carro tremendo. Eu havia acabado de sentir na pele, nos olhos e mais, no coração, o ódio que aquele motorista tinha do outro. Ele se apoiava a todo tempo no termo "família", no termo religião, mas só o que eu via naqueles olhos pelo retrovisor era ódio, ignorância, ausência de amor. 

Naquela terça eu senti que acabara de deixar um assassino partir. E hoje eu sinto que Gustavo foi assassinado por aquela agressão, pois ele também não acreditara que tanta maldade poderia haver naquela mulher, "mãe de família", que demonstrou a sua filha que odiar o outro é o caminho certo a seguir, até mesmo Gustavo, que só estava ali para fazer o bem. *

CASO PRECISE - PROCURE AJUDA – Em Campo Grande, o Grupo Amor Vida (GAV) presta um serviço gratuito de apoio emocional a pessoas em crise através dos telefones (67) 3383-4112, (67) 99266-6560 (Claro) e (67) 99644-4141 (Vivo), todos sem identificador de chamadas. Horário de funcionamento das 07h às 23h, inclusive, sábados, domingos e feriados. 

PARA TODO O BRASIL, HÁ O CVV – Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.As ligações para o CVV através do número 188 são gratuitas a partir de qualquer linha telefônica fixa ou celular, provenientes de qualquer cidade do estado contemplado, a partir das datas estabelecidas.