28 de março de 2024
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Feminicídio

Sobrevivente de feminicídio ajuda a tirar mulheres do ciclo da violência

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“Eu sempre acreditei que casamento era para sempre e lutava para manter meu relacionamento, até que um dia ele tentou me estrangular”. A fala é de Bruna Oliveira dos Santos, de 29 anos. Diferente de outros casos como o da violonista Mayara Amaral, covardemente assassinada em julho de 2017, em Campo Grande, a história que você vai ler agora tem um final feliz.

Após sobreviver a uma tentativa de feminicídio Bruna procurou ajuda e orientação do Estado, passando por diversos setores até chegar no Centro Especializado de Atendimento à Mulher (CEAM) Cuña M’Baretê, na Capital. Foi lá que recebeu apoio psicológico para recomeçar sua vida. Hoje ela atua como técnica e palestrante na Subsecretaria de Políticas Públicas para Mulheres de Mato Grosso do Sul (SPPM-MS), encorajando mulheres que passam por situações de violência. “Assim que saí do hospital resolvi procurar ajuda do estado e depois de muita terapia e acompanhamento no CEAM eu descobri meu potencial e vi a diferença que eu podia fazer na vida de outras mulheres. Cada vez que contava a elas o que passei, eu evoluía mais rápido”, revela Bruna.

O início

No Brasil, até o final do século 19 era considerado lícito um marido traído matar a esposa em flagrante delito, sob o argumento de “defesa da honra”. Pois é. Ainda há poucas décadas agressores assim só recebiam penas leves, alegando crime passional conduzido “por amor”.

E era exatamente com essas palavras, “por amor”, que o agressor de Bruna se desculpava todas as vezes que a violentava durante o casamento, em Campo Grande. “No início era maravilhoso, ele me agradava de todas as formas, mas logo passou a me controlar, manipular meus pensamentos, vontades, me chamava de feia, dizia que eu não era inteligente e queria escolher tudo para mim. Eu achava que era normal, uma forma de carinho, até sofrer a primeira agressão física. Depois que me batia ele sempre pedia desculpas, dizia que era uma forma de mostrar que me amava, que se preocupava comigo e eu tinha esperança de que isso poderia melhorar”.

O ciclo da violência

Mas não melhorou. Em fevereiro de 2017, após sete anos sofrendo inúmeros abusos e violência dentro de casa, Bruna consegue se separar. Mas a insistência do ex-companheiro despertou novamente nela compaixão. “Eu sentia muita falta dele e acabamos voltando em julho do mesmo ano”, alegou. Tudo parecia bem até que um dia, após uma discussão, Bruna quase perde a vida estrangulada pelas mãos do marido. “Em setembro de 2017 nos separamos pela segunda e última vez. Sempre que me dava socos me pedia desculpas em seguida, mas nesse dia eu não aceitei e ele começou a me estrangular. Eu consegui fugir e iniciei o processo de separação”.

Algum tempo passou, o agressor parecia ter aceitado tranquilamente a separação e até iniciou outro relacionamento. Bruna voltou para o mesmo lar e passou a morar sozinha. Até que no dia 4 de novembro, às 4 horas da madrugada, após um dia exaustivo de trabalho ela acorda com pancadas de capacete na cabeça. Desnorteada, só percebeu o que estava acontecendo quando saiu do quarto, encontrou um facho de luz e reconheceu o agressor. Mas o pior ainda estava por vir.

“Ele pulou o muro, invadiu minha casa e me espancou ainda dormindo. Acordei sem saber o que estava acontecendo, ele me batia com o capacete e com tudo o que via pela frente. Tentei proteger meu rosto com as mãos, foi quando ele pegou um pé de cabra e quebrou meu braço em dois pedaços e continuou a golpear minha cabeça na frente de casa”, detalhou.

A perseguição seguiu por seis quadras. Bruna pedia ajuda nas casas e nas ruas, mas as pessoas recusavam. Com muito sangue no corpo, de madrugada, descalça e vestindo apenas a camisola que usava para dormir, não foi difícil obter desprezo e medo da população que acordou com os gritos de socorro.

“Parecia que eu estava em um pesadelo e não conseguia acordar. Eu corria com o corte na cabeça, segurando meu braço quebrado. Cheguei a achar que estava chovendo, mas era meu sangue que escorria. As pessoas me viam, mas recusavam ajuda. Ele me encontrava na rua, me batia e saía. Logo ele voltava e batia de novo, até que cheguei em uma avenida e lá ele me atropelou. Fiquei caída no asfalto sem acreditar no que estava acontecendo, foi quando ele desceu da moto e começou a chutar minha cabeça. Naquele momento eu desisti de viver”, confessou Bruna.

Quando retornou à consciência viu pessoas ao seu redor e conseguiu ouvir a conversa entre elas. Seu agressor justificava o ato inventando que havia sido traído e que a violentou por ciúmes. Conhecendo a sociedade e seus julgamentos não é difícil acreditar no que acontece depois: “Escutei ele dizendo que era meu marido e que me pegou em flagrante traindo ele, por isso agiu sem pensar. Alguns diziam que foi merecido, outros não quiseram se envolver no que eles julgavam ser uma briga de marido e mulher. No momento em que o soltaram e entenderam a teoria dele, ele aproveitou e fugiu. Logo as pessoas também se afastaram e novamente fiquei sozinha até receber ajuda de verdade e ser levada ao hospital”.

Rompendo ciclos

O pesadelo acabou. Hoje a vida de Bruna é ajudar outras mulheres a romperem com o ciclo da violência doméstica (tensão, ato da violência e reconciliação) e evitar que virem estatística de feminicídio.

Logo após receber alta da internação da qual passou por duas cirurgias, ela abriu um boletim de ocorrência na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), órgão com atendimento 24h que protege e investiga crimes de violência doméstica e sexual. De lá foi atendida na Casa da Mulher Brasileira onde passou por uma triagem especial até ser acolhida no CEAM. Foi lá que avistou um novo facho de luz que desta vez iluminava apenas a esperança de um recomeço.

“No Centro Especializado de Atendimento à Mulher comecei a entender melhor o ciclo da violência e vi que ela acontece todos os dias com inúmeras mulheres. Meu futuro se abriu. Decidi que minha vida seria lutar para que outras mulheres não passem pelo que passei. É gratificante levar meu depoimento e ver que elas se identificam e podem romper seus ciclos ouvindo a história de outra pessoa”, afirmou.

Políticas públicas para  mulheres

Considerada uma “pandemia global” pela Organização das Nações Unidas (ONU), a violência contra a mulher tem aumentado desenfreadamente.  Em contrapartida, nos últimos anos as políticas públicas para as mulheres conquistaram atenção especial do Governo do Estado. Em Mato Grosso do Sul o órgão gestor é a Subsecretaria de Políticas Pública para as Mulheres (SPPM), ligada diretamente a Secretaria Subsecretaria Especial de Cidadania (Secid) por meio da Secretaria de Estado de Governo e Gestão Estratégica (Segov). É ela quem dialoga e articula com os diversos segmentos da sociedade civil, executando programas e ações que garantam a cidadania plena das mulheres.

“O Mato Grosso do Sul é sem dúvida um dos Estados mais comprometidos com as políticas públicas para a mulher. Muitas ainda não percebem que estão presas em um ciclo perigoso do qual correm risco de vida.  É aí que o Governo do Estado tem um papel fundamental de apoio às vítimas de violência, tanto de acolhimento quanto de conscientização, no meu caso me ajudou em todas as esferas”, finalizou Bruna.