19 de abril de 2024
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RACISMO

Delegado vítima de racismo divulga carta e não aceita 'só' pedido de desculpas

O crime de racismo é, aliás, o único crime em que o réu tenta se livrar da acusação fazendo um cínico pedido de desculpas

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O delegado da Polícia Civil do Distrito Federal, Ricardo Viana, divulgou uma carta na 3ª-feira (11. agosto) onde descreve o encontro que teve, no Lago Sul, área nobre de Brasília, com familiares do homem que o xingou de “macaco”.

Segundo o delegado, ele teve uma conversa cordial com o irmão e o pai do seu agressor, no entanto, avisou a seus interlocutores que nada pedissem em relação ao processo que move contra Pedro Henrique Martins Mendes, de 35 anos, que, antes de ofendê-lo, já havia sido denunciado por humilhar um gari com ofensas racistas, chamando-o de “neguinho”.

Este é mais um entre outros milhares de casos de agressão de cunho racista que ocorrem no país e que, infelizmente, a grande maioria ainda permanece sem repercussão, com a vítima despedaçada emocionalmente e os agressores livres para continuarem cometendo crimes.

Porém, nesse caso, parece que o processo não vai se encerrar com meras escusas. O crime de racismo é, aliás, o único crime em que o réu tenta se livrar da acusação fazendo um cínico pedido de desculpas.

“O homem negro não é um homem, é um homem negro”, dizia o psicanalista Franz Fanon, no livro Pele Negra Máscaras Brancas, evidenciando que o tom da pele ainda é traço definidor de uma certa humanidade ou da falta dela.

“Não nasci delegado, mas sim, negro, caçula de oito irmãos, filho de uma Raimunda e de um Antônio, ambos nordestinos, os quais migraram para esta cidade em busca de melhores condições de vida. Aqui nasci e pretendo viver como cidadão, isto é, em igualdade com os demais que aqui habitam”, afirma o delegado.

A carta foi lida pelo deputado distrital Chico Vigilante (PT) em sessão virtual da Câmara Legislativa do Distrito Federal. Nela o delegado lembra, ainda, os outros casos recentes que tiveram repercussão na mídia.

O acusado, Pedro Henrique, tem passagens pela polícia por uso de drogas e lesão corporal, e já havia se manifestado por meio de um texto endereçado “ao senhor Ricardo, à sua filha, aos familiares e a todos os seres humanos”, onde pede desculpas pelo ato infame, diz-se solidário à dor de suas vítimas e que seu destempero não “é reflexo de sua educação, do amor e do respeito que recebi e que carrego como preceitos básicos.”

O homem que assina a carta não se parece em nada com o que, na sexta-feira passada, xingou o delegado de forma agressiva e anti-empática. Nas palavras da vítima, “ele falou que iria me pegar, me chamou de macaco e viado e arremessou um pé de sua chinela em minha direção”.

Preso em flagrante, o agressor ainda tentou fugir, mas não obteve êxito. Com ele a polícia apreendeu uma porção de maconha.

“Até o momento, não entendi porque tanto ódio em uma pessoa só, o pior é saber que este tem um histórico de violência e já praticou fatos semelhantes com outros negros”, escreveu o delegado.

Leia íntegra da carta.

Hoje, recebi o irmão e o pai da pessoa que ofendeu a mim e a minha filha na última sexta-feira. Condicionei esta conversa a nada pedirem em relação ao processo que há de vir. Ambos se retrataram em nome do ofensor. Neste momento, creio que não há espaço para se alimentar o ódio. Conversamos de forma polida, assim como três pessoas diferentes e tolerantes devem se ater. Não sei o porquê de Deus me colocar naquele cenário com uma pessoa que jamais vi e acontecer o que todos já sabem, mas a minha voz ecoou muito além do que eu imaginava. Talvez por ocupar um cargo em uma das melhores polícias judiciárias do país. Sim, talvez. Uma coisa é certa, não nasci delegado, mas sim, negro, caçula de oito irmãos, filho de uma Raimunda e de um Antônio, ambos nordestinos, os quais migraram para esta cidade em busca de melhores condições de vida. Aqui nasci e pretendo viver como cidadão, isto é, em igualdade com os demais que aqui habitam. Passamos uma semana com incidentes incomuns, Matheus, Ricardo, Francisco e muitos outros que estão anonimato foram subjugados, simplesmente pelo tom da pele. De onde vem tanto ódio? Sem dúvida, este debate encontra-se aberto há 131 anos, momento em que meus antepassados, escravos, ou melhor, escravizados, foram “libertados” e até hoje, nós, negros, lutamos por direitos básicos. Creio que chegou a hora não de incrementar, mas de incendiar este tema, para que possamos um dia termos uma sociedade mais justa e igualitária. À minha filha, meus sinceros sentimentos de lhe ter exposto o mundo preconceituoso de forma tão truculenta. Aos racistas, o meu silêncio. Respeito!”. 

FONTE: REVISTA FÓRUM.