18 de abril de 2024
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INEFICAZ CONTRA COVID-19

Hidroxicloroquina doada pelos EUA encalha, Saúde avalia seguir a bula

Gestores da pasta confirmam negociação de proposta para redirecionar medicamentos para indicações em bula, em especial lúpus e artrite

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Mais de um ano após comemorar a doação de hidroxicloroquina pelos Estados Unidos e por uma farmacêutica para o uso contra a Covid, o governo Jair Bolsonaro ainda estoca cerca de 2,1 milhões desses comprimidos em armazéns do Ministério da Saúde e do Exército e já avalia dar novo destino a eles.

Desde o fim do último ano, caiu o número de prefeituras que solicitaram o medicamento, sem eficácia comprovada para a Covid. Em 2021, houve só oito pedidos e há casos de cidades que tentam devolver unidades.

Cerca de 70% dos 3 milhões de unidades doadas ao Brasil seguem em estoque. Agora, a proposta é redistribuir esses medicamentos para uso nas indicações previstas em bula, como artrite e lúpus. Esse pedido já havia sido feito por gestores de saúde no ano passado, mas o ministério ainda buscava alternativas para uso dos remédios em pacientes com Covid-19.

Impulsionado pela promoção do tratamento feita por Donald Trump, ex-presidente dos EUA, e por estudos preliminares, o governo Bolsonaro correu para acumular cloroquina e hidroxicloroquina nos primeiros meses da pandemia.

O Laboratório do Exército turbinou a produção de cloroquina, e doses já fabricadas pela Fiocruz para o programa de malária foram desviadas para o combate à Covid.

Documentos entregues à CPI mostram ainda que o governo tentou comprar 5 milhões de doses da hidroxicloroquina da Índia, em abril, mas desistiu do negócio em outubro, quando já estocava o produto.

Segundo informações entregues pela Saúde à CPI da Covid e concedidas pelo Exército via Lei de Acesso à Informação, há ainda 2,17 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina estocados. A maior parte (1,4 milhão) está em armazém do Ministério da Saúde. Já o Exército guardou cerca de 1 milhão dos remédios doados, dos quais ainda mantém ao menos 780 mil.

A droga doada ao Brasil ainda precisa ser fracionada em frascos menores, operação que reduz a validade do produto e deve ser custeada por quem pedir ao ministério o envio das doses.

Procurados, o Ministério da Saúde não confirmou o estoque atual de doses, alegando que a informação é reservada, e disse que as orientações sobre a cloroquina estão sendo revistas. O Exército não disse para quais locais mandou o medicamento ineficaz contra a pandemia.

O ministério apontava que a hidroxicloroquina doada por Trump seria o trunfo do país para enfrentar a Covid a partir do segundo semestre de 2020.

Antes disso, a pasta apostou na cloroquina feita em laboratórios públicos –cerca de 5,4 milhões de comprimidos foram distribuídos.

O ministro Marcelo Queiroga foi questionado pela CPI, em depoimentos de maio e junho, sobre se manterá a entrega dos medicamentos sem eficácia para a Covid pelo SUS.

Primeiro ele afirmou que não autorizou a distribuição dos medicamentos na sua gestão, que começou no fim de março. Mas dados da Saúde mostram que Presidente Prudente (SP) recebeu 100 mil unidades em 27 de abril.

Já no depoimento deste mês, Queiroga disse que os remédios guardados poderiam ser usados para indicações em bula. "Tratamento da malária, tratamento de afecções reumáticas que está previsto para essas medicações. Esse é o destino", afirmou.

O Exército também estoca cerca de 300 mil unidades de cloroquina, parte dos 3,2 milhões de comprimidos feitos no laboratório para a pandemia. A produção anterior da droga no órgão havia sido de 256 mil unidades, em 2017.

Mesmo com a sobra dos dois medicamentos, o ministério pediu, em dezembro, para a Fiocruz entregar mais 750 mil doses de cloroquina.

Representantes de secretários ouvidos pela reportagem afirmam que a demanda pelo uso desses remédios já vinha em queda. Na mesma época, havia estudos que apontavam ineficácia no tratamento.

O ministro disse à reportagem que mantém a orientação citada na CPI, salvo nova análise da Conitec, comissão que analisa incorporação de remédios no SUS e que já deu parecer inicial desfavorável à cloroquina no tratamento hospitalar, por exemplo.

Embora o ministério não tenha respondido sobre outros usos, gestores de saúde confirmam que a pasta já negocia uma proposta para redirecionar esses medicamentos para indicações em bula, em especial lúpus e artrite.

A medida foi apresentada nas últimas semanas aos conselhos que representam secretários de Saúde de estados e municípios. Em nota, o Conass confirma a medida e diz que tem feito consulta aos estados sobre quais poderiam receber os remédios.

Locais que receberam os medicamentos também já falam em devolução ou remanejamento para outras doenças. Joinville (SC), por exemplo, recebeu 160 mil unidades de hidroxicloroquina em setembro, o maior lote entregue pelo governo federal. Sem demanda pela droga e sob nova gestão na prefeitura, a cidade agora tenta devolver 135 mil unidades que seguem encalhadas.

Em Belo Horizonte (MG), o uso do medicamento para a Covid também foi suspenso, segundo a prefeitura. Em 2020, a pasta recebeu 6.000 comprimidos, e só cerca de 20% foi usado.

Parte do volume recebido também ficou guardado em Pirassununga (SP). "Se usamos, foi meia dúzia. Ninguém mais está receitando", diz o secretário municipal de Saúde, Edgar Saggioratto.

No Amazonas, os 120 mil comprimidos recebidos em janeiro, quando o estado enfrentava colapso por falta de oxigênio, foram distribuídos para tratamento de pacientes com lúpus e artrite, afirma a Secretaria Estadual de Saúde. A posição foi reforçada pelo ex-secretário da área, Marcellus Campelo, em depoimento à CPI da Covid.

Alinhado a Bolsonaro, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), pediu e recebeu cerca de 18 mil comprimidos. Apenas dez unidades foram usadas, por somente um paciente, antes de a Justiça proibir a entrega do "kit Covid" na cidade. A prefeitura disse que vai mandar de volta ao governo federal o medicamento.

Questionado sobre se há previsão de adotar alguma medida diante do pedido de devolução por alguns municípios ou estoque nestes locais, o ministério não respondeu.

** (Com informações Folhapress)