08 de maio de 2024
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Travessias Cotidianas

PARA QUEDAS

PARA QUEDAS

“O estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados recentes encomendaram para nós. (…) Chegou embrulhado e com o aviso: depois de abrir, não tem troca. Há duzentos, trezentos anos ansiaram por esse mundo. Um monte de gente decepcionada, pensando: Mas é esse mundo que deixaram para a gente?” (Ailton Krenak)

Qual é o mundo que vocês (nós) estão empacotando para deixar às gerações futuras? Aliás, já se perguntaram se esse é o tipo de mundo que elas desejarão?

Para escrever esta carta a vocês, amigos leitores, peguei emprestadas algumas reflexões do pequeno grande livro intitulado “Ideias para adiar o fim do mundo”, escrito pelo pensador indígena Ailton Krenak. 

Passei semanas pensando sobre a temática e estilo e confesso que ainda não sei se esse é o melhor caminho. Mas se tem algo valioso que aprendi com a psicanálise foi que algumas coisa simplesmente nos atravessam sem pedir licença e acabam tornando-se um tópico de reflexão e que o que o outro irá entender a partir disso não é passível de controle. Pois bem, decidi, então, escrever cartas sobre aquilo que esbarra dentro de mim durante minhas andanças cotidianas e lançar ao mar cibernético, onde todos nadamos diariamente. Esta, em especial, foi fruto de dois encontros que tive na semana passada e cuja amarração encontrei no contorno das letras de Krenak.  

Divido com vocês o primeiro deles. Tenho o hábito de assistir filmes aos domingos à noite e um, em particular, despertou-me o desejo da escrita. “Você não estava aqui”, do roteirista e diretor Paul Laverty, é daqueles filmes doloridos e necessários. Expõe a exaustiva e difícil rotina de um pai de família, entregador autônomo (como um motoboy de delivery ou Uber), de uma mãe cuidadora de idosos e de dois filhos adolescentes que tentam sobreviver nessa sociedade cheia de falsas promessas. No retrato da família, as pessoas estão sempre perto umas das outras, mas mal se veem, pois os pais trabalhavam como “condenados” em jornadas de 14 horas diárias. Segundo Paul, o filme não é um manifesto político, mas uma tentativa de olhar para o caos da vida contemporânea dominada pela tecnologia, que promete liberdade e progresso, mas na contramão, nos escraviza. Ou seja, é um filme sobre a ilusão da liberdade. 

Em uma entrevista ao El País, Laverty nos chama atenção ao discurso “você não trabalha para nós, mas conosco” para nos alertar sobre a ideologia de que somos guerreiros empreendedores, soldados da própria vida, enquanto, na verdade, estamos atados a um sistema de exploração e exaustão. Sei que alguns dos leitores devem estar pensando nos clássicos exemplos de trabalhos precarizados, mas olhe para sua rotina, seu tempo para fazer coisas de que gosta e, até mesmo, suas condições de trabalho. Será que também não podemos falar de um certo tipo de precarização?

Como bem ensina a professora Marilena Chauí, o movimento do capital transforma toda e qualquer realidade em objeto do e para o capital, convertendo tudo em mercadoria, inclusive nossa força de trabalho. Esse movimento é próprio do neoliberalismo, cunhado pela autora como um novo totalitarismo (recomendo a leitura). Não irei desdobrar o assunto aqui, mas o que me chama atenção em sua aula sobre o “novo totalitarismo” é que o neoliberalismo encobre o desemprego estrutural. É por meio disso que o filme traz a superfície a uberização do trabalho, definindo o indivíduo não como membro da classe social, mas como um empreendimento, um capital humano. Ou como muitos adoram chamar “o empresário de si mesmo”, cujo destino é a competição mortal em todas as organizações, dominado pelo princípio universal da concorrência disfarçada de meritocracia. 

Escutamos por aí, o tempo todo, que seu salário é, na verdade, uma renda individual e educação é um investimento para que seu filho ou filha aprendam os comportamentos competitivos para viver nessa sociedade. O indivíduo é treinado para ser um investimento bem-sucedido e interiorizar uma culpa quando não vencer a competição, destruindo a percepção de si como membro de uma classe social ou comunidade e destroçando formas de solidariedade. 

Bem, então caímos nesse abismo e não tem mais o que fazer? Será esse o fim do mundo?

O segundo encontro que tive na semana foi com meu pai em um jantar. Contei um pouco sobre o filme, falamos sobre o precariado e suas consequências sociais, até que, de forma quase poética, meu pai trouxe uma importante reflexão. “Mesmo diante de toda essa dor, violência e cansaço, as pessoas resistem, Lígia. Existe algo dentro de nós que nos faz continuar sobrevivendo. Acho que seria bacana escrever sobre isso”.

Por isso, reli Krenak, para encontrar esperança. O fim do mundo, para este autor, não é uma breve interrupção de um estado de prazer que a gente não quer perder, afinal, se olharmos para a história, existem inúmeras quedas em diferentes escalas e lugares do mundo. Por que tanto medo de uma queda se não fizemos outra coisa a não ser cair? 

Sentimos um medo paranoico da queda, porque as outras possibilidades exigem que a gente imploda a casa que herdamos e carregamos a duras penas. A proposta de Ailton não é eliminar a queda, já que ela é inevitável, mas inventar milhares de paraquedas, coloridos, divertidos e, quiçá, prazerosos. No entanto, de que lugar se projeta os paraquedas? Para ele, onde são possíveis diferentes visões de mundo e do sonho. Um lugar para além da terra dura, um lugar da experiência transcendental, na qual o casulo humano implode, abrindo-se para outras visões da vida não limitada. Talvez, seja outra palavra para o que ele e outros indígenas chamam de natureza.

Quem sabe nosso pacote seja, então, de sonho para iniciar pessoas na tradição do sonhar. 

P.S.: Já olhou se tem uma formiga passando na tela do seu computador hoje? Ou se o sol está tocando sua pele? Pode até parecer utópico, mas experimenta fechar os olhos e ouvir o vento assobiar nos teus ouvidos, como nos ensinou Eduardo Galeano.

Lígia Burton Ferreira  - CRP 14/07526-3

 

 

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