08 de dezembro de 2025
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Votos ou Desenvolvimento: com a palavra, o Congresso

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Num país marcado por profundas desigualdades regionais, seria natural esperar que os recursos públicos funcionassem como instrumento de correção dessas distorções históricas. No entanto, no Brasil, ocorre o oposto: as verbas parlamentares têm sido cada vez mais capturadas por uma lógica eleitoreira, que privilegia o capital político dos congressistas em detrimento do interesse coletivo.

Segundo levantamento do UOL (21/07/2025), os 10% dos municípios mais beneficiados receberam, em média, R$ 1.028,00 por habitante em 2024, enquanto os 40% menos favorecidos ficaram com apenas R$ 107,00 – uma disparidade agravada pela própria destinação dos repasses.

O funcionamento dessa engrenagem é simples e perverso: deputados e senadores canalizam montantes vultosos para seus redutos eleitorais, muitas vezes sem qualquer carência objetiva. Enquanto cidades como Aporé (GO), carentes de serviços básicos como raio-X e manutenção de estradas, são negligenciadas por não contarem com representantes influentes no Congresso, localidades pequenas e já bem assistidas, como Cutias (AP), chegam a receber R$ 3.700,00 por habitante. Não se trata de justiça distributiva, mas de pura geopolítica eleitoral.

Esse modelo foi aprofundado por dois instrumentos legislativos recentes: as chamadas emendas Pix, que dispensam planejamento técnico, e o polêmico "orçamento secreto", que entre 2020 e 2022 permitiu repasses bilionários sem critérios objetivos ou transparência. Em vez de fortalecer o papel técnico do Executivo e dos órgãos de controle, o Legislativo ampliou sua ingerência sobre os cofres públicos, assumindo uma posição quase orçamentária, com sérios prejuízos à racionalidade da gestão.

Nesse rearranjo de poder, o planejamento nacional deixou de ser estruturado com base em metas estratégicas de interesse coletivo. Boa parte das verbas discricionárias é pulverizada em pequenas obras de baixo impacto e alto valor simbólico-eleitoral, como praças, tratores e asfaltamentos localizados. A lógica da visibilidade política se sobrepôs à da eficiência. Grandes projetos de infraestrutura, saneamento e educação perdem prioridade frente à disputa paroquial por recursos.

Especialistas são unânimes em classificar o modelo brasileiro como anômalo. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Congresso controla cerca de 1,5% das despesas discricionárias por meio de emendas. No Brasil, esse percentual ultrapassa 20%. A inversão é drástica: parlamentares que deveriam legislar tornaram-se, na prática, operadores financeiros. O resultado é um Parlamento voltado à manutenção de seus próprios mandatos, e não ao desenvolvimento nacional.

A consequência prática é a manutenção – e, em certos casos, a escalada – da exclusão territorial. Cidades pequenas e vulneráveis seguem à margem dos investimentos federais por não oferecerem retorno político imediato. Nessas regiões, a população permanece invisível para o Estado, enquanto áreas com representação ativa acumulam benesses. O pacto federativo, assim, é distorcido para servir a uma aristocracia legislativa.

Essa lógica ainda bloqueia avanços em justiça tributária. O Congresso atua como anteparo contra medidas que desafiem privilégios históricos, como a taxação de lucros e dividendos ou a criação de alíquotas superiores de IR para os super-ricos. Ao mesmo tempo, tolera um sistema regressivo que penaliza os mais pobres. O resultado é um modelo fiscal que retroalimenta a concentração de renda e perpetua a dependência dos municípios em relação às transferências especiais, numa relação clientelista disfarçada de política pública.

Superar esse ciclo exige medidas duras, mas viáveis: transparência absoluta nos critérios de distribuição; vinculação das emendas a indicadores socioeconômicos; limitação constitucional da ingerência legislativa sobre a execução orçamentária; e, sobretudo, coragem política para enfrentar interesses consolidados. O Brasil precisa de planejamento de Estado, não de feudos eleitorais irrigados com dinheiro público.

Exemplo disso é o caso de São Luiz do Anauá (RR), campeão nacional em repasses per capita, que mesmo em meio à fartura de recursos decretou calamidade financeira. Um paradoxo que escancara a disfunção do arranjo atual, que privilegia ganhos políticos imediatos em vez de progresso duradouro.

Ou se rompe com essa lógica que prioriza votos em lugar de desenvolvimento, ou o Brasil continuará refém de um modelo em que o erário serve à autoproteção política. A distorção das emendas não é apenas um sintoma da má gestão: é reflexo de uma falência ética e de um sistema que perpetua, pela via institucional, a desigualdade. Corrigir essa trajetória não é apenas uma exigência fiscal — é um imperativo moral e civilizatório.

* Luciano Martins é advogado, mestrando em Educação pela UFMS, vice-presidente da União Brasileira de Apoio aos Municípios em MS. Atuou como Procurador Municipal de Bandeirantes/MS, Controlador-Adjunto, Secretário Adjunto de Governo e Diretor-Presidente da Funsat em Campo Grande/MS.