20 de abril de 2024
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VIOLÊNCIA

"Me tiraram um irmão, um espelho de vida", diz amigo de estudante morto em assalto

Militar morto durante assalto de celular há 1 anos e 8 meses; amizades, feridas e omissão do estado

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OPINIÃO -  A vida de jornalista nos dá ao mesmo tempo força/medo, pois quanto mais vivemos, escrevemos e lemos, menos acreditamos na humanidade, no homem e no humano que há em cada um. Apesar de as vezes, poucas vezes, vermos o bem, todos os dias eu me levanto e me deparo com o mal. A violência, a desgraça e a poesia se misturam sempre, de forma a confundir o que são separadamente. 

Há um ano e oito meses perdemos ‘Titia’, um amigo de escola! Dos tempos que estudamos: “Coala”, “Dumbão”, “Bigôde”, “Kevin”, “Lari”, e outras grandes amizades do nosso ensino médio.

“Titia”, Rafael Lucas Soares, já somava seus 23 anos, já havia terminado o ensino médio, o qual compartilhamos, e seguia carreira militar na Força Aérea Brasileira (FAB) além de fazer faculdade. Na noite de terça-feira (12 de junho de 2018), “Titia” esperava o ônibus em frente à sua casa no Coophatrabalho, seguiria para faculdade, mas nessa noite ele foi abordado por um ladrão, mais um ladrão, e esse queria seu celular, mas levou também sua vida.

Entenda, “Titia” era humilde, foi criado com pouco e sempre lutou parta adquirir o pouco que tinha, e de repente, chegou um “fulano” portando um “cano” e decidiu tomar o que ele conquistou. – Uns comentam: “era só um celular, não valia a pena”. Mas aqui temos o grande ‘x’ da questão, não é nem pelo celular, mas sim por liberdade. – Isso, nesse dia “Titia” lutou por liberdade de ter o que é seu por direito.

Após assassinar “Titia”, o suspeito fugiu, mas foi preso algumas horas depois e confessou o crime. Segundo a polícia e como mostraram imagens de segurança “Titia” reagiu, lutou com o assaltante, derrubou o assaltante, mas por um segundo deixou uma das mãos do criminoso escapar, com isso, acabou sendo morto com dois tiros: um no peito e outro na perna esquerda. Após os disparos o bandido fugiu a pé com capacete.

Naquele dia, eu não reportei o fato, eu nem se quer quis falar sobre isso com os amigos, pois “Titia” tinha uma luz, e, eu sempre pude ver esse brilho em seus olhos, e não quis abdicar tão fácil daquela boa lembrança, mas agora faço uso dessa nova lembrança para pedir, por meio dessa crônica: tenhamos menos desumanidade. 

Em reportagem ao G1 MS nessa quarta-feira (12), assinada pela competente jornalista Graziela Rezende, um trecho do depoimento da mãe do “Titia”, a auxiliar de limpeza Ruth Josilene Soares, de 44 anos, me fez refletir. “Não tenho como não lembrar [do dia do assalto], o rapaz que cometeu o crime era um conhecido do meu filho... e usou a desculpa que tinha que pagar a pensão da filha... mas tenho certeza que queria o celular para trocar e usar droga”, disse.   

Lamentavelmente a cena e o cenário são os mesmos, todos os dias, em todos os cantos de um país o qual a política do abandono social impera, um país, um estado, uma cidade, um bairro, uma casa, uma família e incontáveis vidas devastadas pela omissão do estado brasileiro. "Meu filho estava cheio de sonhos, tinha cinco anos na base aérea já e estava terminando a faculdade. Ele pretendia morar fora do país e, por conta de um celular, morreu agonizando na frente de casa. Hoje, o irmão dele, que viu tudo isso, não estuda, não trabalha, não conversa com ninguém e quase não sai de casa. É muito difícil passar por tudo isso", contou a mãe de “Titia” ao G1 MS. 

De acordo com a Delegacia Especializada de Repressão à Roubos e Furtos (Derf), somente no mês de janeiro deste ano, 163 celulares foram roubados em via pública, em diversos bairros da cidade. Em 2019, no mesmo período, foram 230 aparelhos levados por bandidos, contabilizando uma queda de 29,1%.

No entanto, quando se fala em receptação dolosa, que é o caso de uma pessoa adquirir um aparelho sabendo que ele é ilícito, os casos tiveram aumento de 30%. Ou seja, foram 13 pessoas indiciadas por este crime no mês de janeiro, enquanto outras 10 foram indiciadas no mesmo período, porém, em 2019, os levantamentos são do G1. 

Falei com dois amigos da época de escola, para alguns o acontecido é recente, para outros a sociedade faz questão também de se omitir. “Eu já perdi um tio meu da mesma forma. Eu acho que a sociedade hoje dá menos importância cada dia que passa pra esses casos, principalmente por se tratar de um rapaz que viveu em escola pública e tal, eu sinto que tem uma omissão aí, um desvio de importância”, disse Larissa Evans. 

Outro colega, carinhosamente chamado de ‘Coala’, Gabriel Miranda, de 22 anos, já era muito próximo, bastante o suficiente para chamar “Titia” de irmão. Ele relata que terminou a faculdade que fazia no mesmo curso que “Titia”, em Tecnólogo de Processos Gerenciais, no Senai, e é muito difícil viver cada dia sem o amigo. “É difícil superar algo insuperável. Rafael não era só um amigo, era como se fosse da família era como se fosse um irmão. Eu ainda não aceito o fato de uma vida valer um celular, mas com o tempo eu também entendi vários outros sentidos da vida, que o tempo nunca curou nada nessa vida, ele apenas faz cair no esquecimento algo que nunca vai passar”, comentou.

Para ‘Coala’, as lembranças dos amigos de escola, futebol, faculdade, rua e festa estão em todos os cantos de sua memória. “A maioria dos lugares onde eu fui, eu fui junto com ele, então elas vivem dentro da minha cabeça, eu acredito que a gente tem um departamento na nossa cabeça com vários quadros pintados dos momentos bons e ruins que vivemos e que se chama lembranças. Graças a Deus pude viver muitas coisas boas com ele, então tá cheio de quadros pintados com esse cara, não me tiraram só um amigo, me tiraram um irmão, um espelho de vida, e acredito eu que não era só eu que o via desse jeito, muitas outras pessoas se espelhava nele”, emendou. 

“Titia” era um menino pobre, tinha quatro irmãos, sem pai, tendo que ajudar sua mãe Ruth, e tudo isso o jovem tirou de letra, servindo-se de exemplo para cada um e cada uma que acha que é fácil ser miserável em um país semi-emergente como o Brasil. 

Entre minha entrada e saída do ensino médio foram 3 anos vividos com esses jovens que colecionam memórias, entre elas as tristezas de ver o amigo “Titia” arremessado para octógono da vida. “Agradeço demais a Deus por ter me dado a oportunidade de viver talvez os últimos 6/7 anos, ser o cara que mais conviveu com ele, eu aprendi muito com ele em vida e ainda estou aprendo muito depois da morte, isso é Rafael, isso é ‘Titia”, finalizou o amigo “Coala”. 

Fonte: Com G1 MS.