Um estudo internacional recentemente publicado na revista Science trouxe à tona a importância dos povos indígenas no processo de disseminação e diversificação genética da mandioca nas Américas.
A pesquisa, conduzida por cientistas da Embrapa e outras instituições internacionais, mostrou como práticas tradicionais de cultivo, incluindo a troca de mudas entre aldeias, foram cruciais para garantir a grande diversidade genética dessa planta fundamental na alimentação humana.
A mandioca, domesticada há mais de seis mil anos na região sul da Amazônia, nos atuais estados do Acre e Rondônia, espalhou-se pelo continente americano e além.
O estudo revelou que, apesar de ser uma planta propagada principalmente por clonagem, a mandioca manteve uma surpreendente variabilidade genética, algo inesperado em culturas desse tipo.
DIVERSIDADE GENÉTICA DA MANDIOCA
A pesquisa analisou 573 variedades de mandioca e seus parentes silvestres, revelando um forte parentesco genético entre elas.
De acordo com os cientistas, a manutenção e disseminação dessa diversidade ao longo dos séculos foi facilitada pelas práticas indígenas de seleção e intercâmbio de variedades, permitindo a propagação de clones de alta qualidade.
Fábio Freitas, pesquisador da Embrapa, explicou que a análise genética revelou que, ao contrário do que se observa em outras culturas propagadas por sementes, como o milho, a mandioca apresentou uma distribuição genética uniforme entre as amostras, independentemente da distância geográfica em relação à Amazônia. “É como se todas as plantas fossem parentes muito próximas, com uma constante troca de material genético entre diferentes regiões", afirmou Freitas.
AMOSTRA DE MANDIOCA COM 2 MIL ANOS
Para conduzir a pesquisa, publicada em 7 de março, cientistas recorreram a coleções de bancos genéticos, a amostras de exsicatas (parte seca e prensada contendo folhas e flores que identificam uma planta) de herbários, variedades tradicionais cultivadas por povos indígenas e até a amostras arqueológicas. “Nós conseguimos sequenciar um leque muito amplo de espécies e variedades, tanto no espaço quanto no tempo. Temos amostras coletadas no ano passado, outras obtidas há mais de 100 anos e até uma amostra arqueológica com 2 mil anos”, explicou Freitas.
Segundo o pesquisador, a mandioca foi domesticada há mais de seis mil anos na borda sul da Amazônia, em uma área que hoje abrange os estados do Acre e de Rondônia. Dali, espalhou-se por todo o continente e além desse. Mas, diferente do que é normalmente encontrado em espécies de propagação sexual por sementes, como o milho, em que é possível identificar linhas evolutivas, para a mandioca isso não foi percebido. No milho as variações genéticas se aprofundam quanto mais distantes geograficamente as amostras estão do seu centro de origem, diferentemente do que foi registrado nesse estudo.
“Na mandioca, toda a diversidade existente entre as diferentes amostras estão mais ou menos espalhadas de forma uniforme, independentemente do quão distantes estão da borda sul da Amazônia, de onde saíram as primeiras populações domesticadas”, ressaltou Freitas. “É como se todas as plantas fossem parentes muito próximas, muitas das quais como mãe e filha. Por exemplo, comparamos uma amostra coletada em Cuba, em 1904, e constatamos que, geneticamente, ela é filha de outra planta coletada na Amazônia, em 1961. Isso mostra como a dispersão dessa cultura, promovida pelos povos indígenas e, ao mesmo tempo, a manutenção de determinadas variedades geração após geração, foi extremamente eficiente ao longo dos séculos”, apontou.
RITUAIS INDÍGENAS E A CRIAÇÃO DE NOVAS VARIEDADES

Um dos elementos-chave da pesquisa está na prática da Casa de Kukurro, uma tradição do povo Waurá, que tem como um de seus objetivos a criação de novas variedades de mandioca.
Para entender como isso aconteceu, é preciso conhecer um pouco essa cultura. A mandioca é propagada predominantemente por clonagem, ou seja, novos cultivos são formados a partir de pedaços da planta original, chamados manivas, sem a necessidade de sementes. Isso quer dizer que plantas com o mesmo código genético podem ser cultivadas durante anos. Esse tipo de reprodução traz muitas vantagens, mas poderia levar à perda de diversidade genética pelo acúmulo de mutações deletérias (uma alteração no DNA que pode diminuir a capacidade reprodutiva e de adaptação de um organismo), no entanto, a pesquisa revelou que a mandioca manteve uma variabilidade surpreendente ao longo do tempo.
Isso ocorre porque a mandioca apresentou um nível de heterozigosidade acima do esperado (até mesmo maior do que a espécie silvestre). Isso quer dizer que uma mesma planta pode ter variação genética entre os dois alelos do mesmo gene contidos nos pares de cromossomos homólogos, mesmo sendo clonada. Ou seja, um clone, às vezes pode apresentar a característica herdada pela planta mãe e outras vezes pelo pai. Esse fator funciona como um "buffer" genético, uma espécie de seguro natural que protege a cultura de mutações prejudiciais e a torna mais resistente a mudanças ambientais, como seca, pragas ou solos pobres.
Além disso, práticas tradicionais das comunidades indígenas contribuíram para a preservação e ampliação da diversidade genética da mandioca. Um exemplo disso é a Casa de Kukurro, uma tradição do povo Waurá, habitantes do Território Indigena do Xingu, no estado de Mato Grosso. Parte do ritual consiste em reunir todas as variedades de mandioca em dois montes ou covas a cerca de 40 metros um do outro, acreditando-se que essa prática fortalece a energia das plantas. Na prática, a Casa de Kukurro permite o cruzamento de diferentes variedades, promovendo o surgimento de novas plantas, essas de forma espontânea, por semente, as quais são avaliadas, selecionadas e, se aprovadas, incorporadas na coleção de variedades de mandioca que já possuem.
Na aldeia Ulupuwene, no Alto Xingu, o agricultor Tapaiê Waurá realiza esse ritual sempre que abre um novo campo de cultivo de mandioca. Em 2018, o evento foi registrado pela primeira vez em vídeo pelo pesquisador Fábio Freitas e pelo videomaker Celso Viviani, da produtora Rentalpix. Voltaram à aldeia em 2019 para acompanhar a colheita e a seleção de novas variedades. O material resultou no documentário Casa de Kukurro, disponível no YouTube.
Mais do que um ritual, a Casa de Kukurro representa uma estratégia eficiente de melhoramento genético da mandioca. “Essa tradição do povo Waurá funciona como um banco genético que permite não apenas a conservação das variedades que já possuem, mas também estimula o surgimento de novas variedades e a ampliação da diversidade da cultura no local. Os povos tradicionais multiplicam e selecionam novos materiais, mantendo aqueles que apresentam características agronômicas, culturais e nutricionais de interesse para a aldeia”, explica Freitas.
IMPACTO DA CLONAGEM NA DIVERSIDADE GENÉTICA DA MANDIOCA

A mandioca é uma planta propagada principalmente por clonagem, ou seja, novas plantas são formadas a partir de pedaços da planta original, chamados manivas. Esse processo, que normalmente resultaria em pouca diversidade genética, na mandioca mantém uma variação surpreendente.
A pesquisa revelou que, apesar da clonagem, a planta possui uma alta heterozigosidade — um grau de variação genética em cada uma das plantas, o que contribui para a sua resistência a pragas, doenças e mudanças ambientais.
Esse fenômeno é uma espécie de “seguro genético” que garante a resistência e a durabilidade da planta ao longo do tempo. Para Éder Jorge de Oliveira, pesquisador da Embrapa Mandioca e Fruticultura, a diversidade genética encontrada é essencial para o desenvolvimento de novos clones mais resistentes e nutritivos.
COLABORAÇÃO INTERNACIONAL E OS DESAFIOS PARA O FUTURO DA MANDIOCA
O estudo envolveu pesquisadores de 19 instituições de oito países e analisou uma ampla variedade de amostras genéticas, incluindo material de coleções da Embrapa e de outros bancos genéticos ao redor do mundo. O trabalho de coleta e análise de amostras de mandioca, realizado ao longo de décadas, foi fundamental para o sucesso da pesquisa.
Eduardo Alano, pesquisador da Embrapa Cerrados, destacou a importância de se estudar a diversidade genética da mandioca para enfrentar novos desafios, como a resistência a pragas emergentes, como a vassoura de bruxa, recentemente identificada no estado do Amapá. "Estudos como esse ajudam a identificar genes de resistência que podem ser fundamentais para o desenvolvimento de cultivares mais tolerantes", explicou Alano.
A DIVERSIDADE GENÉTICA COMO ESTRATÉGIA DE CONSERVAÇÃO
A pesquisa não apenas reforça a importância do conhecimento tradicional indígena na conservação e melhoria da mandioca, mas também abre novas possibilidades para o melhoramento genético da planta. A preservação de variedades geneticamente diversas é vista como uma estratégia eficaz para lidar com condições adversas e garantir a sustentabilidade do cultivo da mandioca no futuro.
Com as novas informações sobre a genética da mandioca, os cientistas podem aprimorar as estratégias de cultivo e melhorar a resistência da planta às mudanças climáticas, pragas e doenças, além de otimizar suas qualidades nutricionais.