29 de março de 2024
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Crítica: Mostra de nus masculinos em Paris faz tudo para 'causar'

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Uma fotografia de três jogadores da seleção de futebol francesa, todos nus, está emoldurada por aquelas fitinhas coloridas que despejam sobre os estádios em momentos apoteóticos da partida. Essa obra da dupla francesa Pierre et Gilles, em toda sua festividade efusiva, parece dar o tom de "Masculin / Masculin", mostra que o Museu d'Orsay, em Paris, dedica de agora até janeiro do ano que vem a 400 anos da nudez masculina nas artes visuais. Sensação deste outono parisiense, com filas quilométricas dando voltas nas escadarias do museu à beira do Sena, a exposição tem clima um tanto ingênuo, como se a visão de um homem sem roupa, seja ele um craque dos gramados ou um herói grego, fosse a descoberta da roda. Não faz mal olhar o sólido conjunto de arte neoclássica logo na entrada da exposição, nem para uma e outra obra-prima pinçada do próprio acervo do museu, como os banhistas de Paul Cézanne em plena forma --sua volumetria estonteante calcada na cor. Mas fica a impressão de que o museu se esforça para fazer corar as senhorinhas que adentram o espaço ao mesmo tempo em que neutraliza obras mais ousadas. É o caso de um retrato do rapper Eminem segurando um rojão em frente ao sexo, ao lado de nus acadêmicos comportados e de dimensões anatômicas mais modestas. nu Nesse ponto, aquilo que seria um trunfo, ou seja, a ideia de contrapor épocas distintas numa mesma sala, acaba virando truque fácil, como um momento cômico quebrando o gelo de um drama. Pierre et Gilles, com suas imagens edulcoradas de homens tão belos quanto artificiais, estão em quase todos os núcleos da mostra, fazendo as vezes desse elemento light e martelando com a sutileza de um carro alegórico a ideia de que o desejo pelo corpo do homem é tão latente na arte quanto o erotismo aceito dos nus femininos. Enquanto esse desejo surge velado nas obras mais antigas, como o São Sebastião de Guido Reni, pintado no século 17, ou os nus de Jacques-Louis David, do século 18, e Théodore Géricault, já no século 19, ele fica mais explícito com o passar do tempo. Entre essas manifestações cifradas e os excessos homoeróticos de filmes como "Pink Narcissus", do norte-americano James Bidgood, que encerra a mostra, há um meio de campo poderoso, talvez a maior força desse conjunto. É a ala do nu realista, em que está uma pintura do alemão Lucian Freud de seu assistente nada atraente e nu, deitado com as pernas arreganhadas, e os autorretratos do austríaco Egon Schiele, em toda a crueza de sua figura angulosa e esguia --um registro da própria decomposição. BELEZA TORPE Em curto-circuito com o erotismo padrão, é nos momentos de dor e desespero que a nudez parece reverberar com mais potência, pondo em choque a plasticidade de um homem nu e a repulsa provocada por seu cadáver. Impossível não enxergar beleza, mesmo que torpe, no Abel ensanguentado e estendido no chão de Camille Félix Bellanger, do século 19, e no mesmo personagem bíblico agonizando nas cores quentes do americano Kehinde Wiley, já no século 21, em que a dor e a morte parecem indissociáveis do desejo. Uma das últimas salas da exposição mostra uma tela do britânico David Hockney ao lado de um documentário que exibe os garotos loiros que ele retratou em banhos de piscina em Los Angeles. Sozinha, a tela ganharia força, mas o vídeo ao lado desbanca o quadro e faz da nudez um fetiche. É menos uma reflexão e mais um artifício de choque raso, como parece insistir esta mostra. (Agência Folha de São Paulo)