28 de março de 2024
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Livraria no Líbano é incendiada após boato de que seu dono era contra Maomé

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Quando as antigas portas de madeira da Livraria Al-Saeh se abrem, escapa rápido pela passagem um ar pesado, carregado de cinzas. Foram queimados ali dentro, na sexta-feira, livros centenários dessa que é conhecida como uma das livrarias mais antigas do Líbano.

Dois dias depois, um mutirão de moradores locais empunharam enxadas e caixas de papelão, em uma tentativa de salvar parte de seu acervo.

A Livraria Al-Saeh foi vítima de extremistas muçulmanos que, diante do falso rumor de que seu dono havia escrito um artigo contra Maomé, o profeta do islamismo, forçaram sua entrada e empaparam os livros com gasolina, antes de atear fogo.

O chefe das forças de segurança chegou a afirmar em público que o boato não era verdadeiro, mas a história já havia incendiado os ânimos na cidade, levando ao ataque de extremistas.

Mas a cena testemunhada pela reportagem no local dava conta da distância que há entre a narrativa de um conflito religioso disseminado na cidade de Trípoli e a realidade, em que muçulmanos sunitas e xiitas se reuniram para, ao lado dos proprietários cristãos, varrer juntos o chão chamuscado.

"Os culpados por esses incidentes são sempre os que odeiam", afirma Muataz Salloum, 26, organizador do mutirão. "São pessoas baratas compradas por quem quer criar conflito no país."

Não são poucos os interessados. O Líbano tornou-se palco das disputas regionais entre correntes islâmicas, opondo xiitas de Irã e Síria a sunitas da Arábia Saudita.

A cidade costeira de Trípoli, em especial, tem sido abalada pelo conflito sírio, já que a sua população alauita (ramo do xiismo) defende o ditador Bashar al-Assad. Os sunitas apoiam os insurgentes, que querem ver o presidente deposto.

MEMÓRIA

Crianças se juntavam, ontem de manhã, ao batalhão de limpeza. De luvas e máscaras cirúrgicas, carregavam livretos para cá e para lá. Não havia eletricidade, e era difícil enxergar. Uma fina fumaça indicava que ainda havia fogo, e corriam nos corredores os baldes de água trazidos pelo Exército.

A queima da Livraria Al-Saeh foi recebida com surpresa ao redor do país. Seu dono, um padre grego ortodoxo, é uma figura local carismática, que vende, inclusive, títulos sobre a vida do profeta Maomé e o islamismo.

"Não sabemos como começou", diz uma libanesa, parente do padre Ibrahim Srouj. Ela prefere não se identificar. "Homens armados vieram e puseram fogo, antes de fugir. Vizinhos ouviram o barulho e vieram ver." Ninguém reivindicou o atentado.

A livraria, fundada nos anos 70, fica em uma antiga delegacia otomana, hoje aos pedaços. "Quando você quer destruir um país, começa por apagar a memória dele", diz a parente.

Cliente da Livraria Al-Saeh há nove anos, um advogado -que também não revela o nome- assistia à limpeza da loja. Ele diz que o proprietário do imóvel já tentara expulsar o dono e sugere uma ligação entre o mercado imobiliário e o incidente, incluindo o sumiço da polícia no momento desse crime.

"O padre Srouj está assustado", afirma. "Ele quer garantias da liderança política e das milícias para voltar e reabrir a Livraria Al-Saeh."

MANUSCRITOS

De acordo com familiares, havia 80 mil títulos na livraria. Um terço deles foi queimado. Os exemplares mais antigos ali datam do século 17, e ainda não se sabe qual foi o dano causado a eles.

O ativista Taha Baba, 25, não se importa exatamente com os livros. Ele confessa, entre estantes escurecidas, que mal gosta de ler. "Sou técnico de computação, só leio livros de informática." "Mas vim ver o que foi feito e, quando encontrei manuscritos queimados, decidi ajudar. Eles destruíram a memória de Trípoli", afirma.

Baba tira seu celular de dentro do bolso e mostra algumas mensagens para a reportagem. Uma delas diz "você é o próximo", em ameaça devido ao fato de ele ter participado de uma passeata, anteontem, contra a queima.

"É uma guerra", diz. "Os extremistas querem criar um Estado islâmico em Trípoli."

Folhapress