09 de setembro de 2024
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ENTREVISTA: ANA MARIA MACHADO

Liberdade é a beleza da literatura, diz ex-presidente da ABL 

Uma das autoras mais lidas no Brasil em 50 anos, escritora veio ao Estado a convite da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras

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Uma das autoras mais lidas no País é assim: despojada, simples e, evidentemente, cuidadosa, sem ferir a doce espontaneidade que brota de suas palavras e de seu olhar juvenil em divertido desafio aos 82 anos. Ela, Ana Maria Machado, imortal e ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), escritora, jornalista e professora universitária, deu a Campo Grande na quinta-feira, 25, o prazer de sua presença.

Na agenda daquela noite, Ana Maria Machado veio fazer uma palestra sobre um tema de instigante nomeação: “Literatura tem modo de usar”? E ela adorou escolher este caminho temático, assim como o grande público que foi vê-la e ouvi-la também adorou. 

Sua presença escreveu mais um capítulo do projeto “ABL na ASL - Palestras Imortais”. É o Chá Acadêmico, uma iniciativa da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL), em parceria com a Secretaria Estadual de Turismo, Esporte e Cultura (Setesc) e a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (FCMS).  

Foto: DivulgaçãoFoto: Divulgação

Ana Maria afirma, nesta entrevista ao jornalista Edson Moraes, que a liberdade de escrever faz a beleza da literatura, cuja linguagem, a seu ver, não pode ser confundida ou vista como uma bula de remédios. “Há pessoas diferentes lendo o mesmo livro, que desperta nelas inquietações diferentes e leva a percursos e leituras diferentes. Esta é a beleza da literatura, é isso que faz as obras literárias durarem no tempo”.

EDSON MORAES – Como definir a Ana da revista “Recreio”, lá dos anos 1970, e a Ana de hoje, com mais de 100 obras? Uma Ana mais encorpada em uma contemporaneidade diferente daquela?

ANA MARIA MACHADO - Eu não sei exatamente te responder, porque é tudo indefinido de alguma maneira. Claro que uma é continuação da outra. Em janeiro de 1970 eu estava indo para o exílio, tinha me formado em Letras, estava começando meu doutorado com a tese sobre Guimarães Rosa. E tive que sair do país levando o material sobre Guimarães Rosa. Tinha escrito duas histórias da Recreio, que ainda estava no número zero, e ela só foi publicada em março de 70. Cheguei do exilio em janeiro. Enquanto eu estava fora escrevi regularmente para a revista Recreio. Pelo menos uma vez por mês saia uma história minha, porque a editora, Sônia Robatto, era uma pessoa de cabeça muito aberta, queria sempre mais. 

A revista vendia muito bem em banca quando as histórias eram da Ruth Rocha, minha ou do Joel Rufino dos Santos. Éramos os três que mais vendiam, cerca de 100 mil exemplares por semana. A Sônia sempre queria historias novas e isso foi fundamental, porque me ajudava a pagar as contas no exilio. Eu publicava aqui, meu pai recebia e mandava o dinheiro para mim. Por outro lado, eu estava aprofundando a tese de doutorado na École Pratique des Hautes Études, em Paris, e me apresentei dois anos depois. Foram dois crescimentos paralelos. Quando voltei para o Brasil, em 1976, a Abril começou a publicar antigas histórias da Recreio, reunidas em livros, e pediu também histórias mais longas. Fiz “Bento que Bento é o Frade”, que foi o primeiro, uma história mais longa. Mas depois ela reuniu “Severino Faz chover” e vários outros. E no mesmo ano eu publiquei a tese de Guimarães Rosa. 

EM – A conjuntura se apresentou para a escritora...

AMM - As coisas se construíram paralelamente e fui começando a escrever mais para crianças, pensando em escrever para adultos. Sem saber como,    comecei em 1976, 77,78, por aí. Comecei a escrever “Alice e Ulisses”, que foi meu primeiro romance, publicado em 1983. Fiz três versões diferentes dele, até sair, e em 1979 tive um ato de ousadia absoluta, que foi mandar um texto infanto-juvenil, digamos assim, para concorrer ao Prêmio Casa de las Américas, que não tinha essa categoria. Mandei, concorrendo em Literatura Brasileira. Era um júri formado por Antônio Cândido, João Ubaldo Ribeiro, Gianfrancesco Guarnieri, Márcio de Souza, Jose de Souza Martins. Um júri muito sério. E eles me premiaram, em vez de premiar os romances que estavam concorrendo. Confiaram na minha aposta de que um juvenil poderia concorrer com um adulto e podia ganhar, enfim. Era com um pseudônimo, ninguém sabia quem eu era e isso me lançou. 

EM – E eram tempos duros, não?

AMM - Eu estava, paralelamente, dirigindo a Rádio Jornal do Brasil, onde trabalhei de 73 a 80. Enfrentava nota de censura todo dia. Então tudo isso veio naturalmente, porque era uma coisa só, escrever em metáfora para criança ou escrever para botar numa rádio do jeito que passasse pela censura. Eram duas coisas muito parecidas, só que minha linguagem era um pouco diferente, me obrigou a ter uma consciência da linguagem muito grande da linguagem jornalística, da linguagem literária. No jornal eu não podia usar metáfora, no rádio eu não poderia ficar usando metáfora. Eu podia dar as informações de maneira indireta, dizer, por exemplo, que tinha havido um enorme engarrafamento em frente à PUC, um engarrafamento enorme enquanto os estudantes estavam fazendo protesto. E aí mandava o repórter entrevistar o chefe dos garis. Evidentemente, não era gari, era policial. E começava a entrevistar, a fazer perguntas sobre o sistema de capinagem e o cara não sabia responder sobre operação de capinagem. Mas aqui no asfalto?  

EM - Você começou rompendo fronteiras do obscurantismo, chegou a ser presa. Havia uma forte pressão contra o esclarecimento que os intelectuais davam para a sociedade sobre o que estava acontecendo. Quando você fazia o lúdico para a criança, metaforizava sua mensagem, com linguagens aparentemente distintas, mas com o mesmo significado. E hoje parece que a necessidade de romper o obscurantismo persiste, a democracia ainda está ameaçada. Os textos que você fazia eram também de cunho libertário?

AMM - Claro que eram. Hoje, a pressão é um pouco diferente. Antes, era uma censura vertical, caia como uma folha de guilhotina, vinha aquilo e pá! Cortava! Hoje, a censura vem pelas redes sociais, é circular, anônima. Antes, vinha um agente com ordem superior para proibir de falar “tralalá”. E hoje vem pela rede social, que diz que você está falando mal disso ou daquilo, que está ofendendo a religião. E aí cresce: em duas horas você tem 14 mil mensagens chegando, uma coisa completamente diferente, muito mais eficiente do que a censura na ditadura.

EM - Você trabalha com a necessidade de o leitor estar sempre perguntando, questionando, sendo sempre provocado para isso?

AMM - Claro, o tempo todo. Eu acho que ler é interpretar.

EM - Existe a linguagem ideal na literatura?

AMM - Não. A linguagem ideal é aquela que tem muito sentidos, que não tem uma só interpretação. No caso da literatura, ela permite que o leitor descubra coisas diferentes, no momento dele, que permitam reapropriações múltiplas.

EM - Você tem uma história de artista plástica.....

AMM - Artista plástica é um processo bem diferente, porque não está trabalhando com o significado...

EM - Mas não é só uma alegoria.

AMM - Não, não, mas não me vejo... nunca pensei nisso, teria que pensar mais para responder. Mas acho que nunca tenha feito um quadro de denúncia. E eu sempre escrevi denúncia.

EM - Este Estado tem a influência da chamada bovinocultura, uma formação cultural identificada com padrões mais conservadores da colonização. Mas ainda oferece um campo para o questionamento e a Academia vem quebrando paradigmas, está mais perto do povo, não é mais aquela entidade no Panteon, distante dos pobres mortais. Você vem para um estado que espera ser provocado para aprimorar seu lastro cultural. O que a literatura pode oferecer de novo ou inovador? 

AMM - O que ela sempre ofereceu: o questionamento. Manoel de Barros sempre questionou, não é agora que vai ser isso. Não é que a literatura seja conservadora ou institucional. A literatura provoca, mesmo que o autor seja do estabelecimento. E é assim, quando se tem qualidade artística, se provoca.

EM - Que importância tem Guimarães Rosa tna sua trajetória?

AMM - Ele foi um explorador da linguagem brasileira, um inovador. Tinha um ouvido para escutar e prestar atenção no que o homem brasileiro diz. Podia ser o homem de Minas ali, mas na verdade era o homem do Brasil inteiro, do que o Brasil profundo diz. Dizer que o real se dispõe pra gente no meio da travessia é ter entendido a história do Brasil. Eu acho fascinante, eu sigo dois mineiros, Carlos Drummond e Guimarães Rosa. Continuam sendo uma influência enorme, não na minha maneira de escrever. Cada um de nós é diferente, mas na minha visão de Brasil e na maneira de pensar, de prestar atenção nas coisas, ele é crucial como outros de outros lugares, como Graciliano é, como Verissimo é.

EM - Todo mês temos aqui a presença de um imortal da ABL. Criou-se o hábito saudável de reunir diferentes correntes e públicos nesses eventos. Este seria um mérito da literatura?

AMM - É um mérito da instituição que resolveu fazer isso. É bom ter pessoas de posições diferentes trocando ideias, ouvindo uns e outros, mesmo sem concordar às vezes. Quando me chamaram para vir, eu me propus a falar sobre literatura. E me disseram: escolha o que você quer. Eu quero literatura, aberta a múltiplas interpretações. A literatura não pode ser confundida com bula de remédio, que diz para que serve, qual a dose que se vai usar, quais as contraindicações. Absolutamente não é isso. Há pessoas diferentes lendo o mesmo livro, e esse livro despertando nelas inquietações diferentes, que vão levar a percursos e leituras diferentes. Esta é a beleza da literatura, é isso que faz as obras literárias durarem no tempo.

EM - O Brasil tem esperança? E onde ela se baseia?

AMM - Não acho que seja só o Brasil, é o mundo. O problema maior que temos hoje no mundo é o ambiental. E é muito grave. Nós podemos não sobreviver várias gerações. O Brasil tem questões muito específicas nisso e se a gente se abstrair...o Brasil virou uma terra da impunidade permanente, sempre tem mais um juiz que vai perdoar, que vai desculpar, que vai passar por cima. E não estou falando de um lado ou de outro. Estou falando da condescendência, esta é uma boa palavra. É um pais que escolhe não ter lei, porque se você não tem a possibilidade de haver uma sanção quando uma lei é desobedecida, quando se vê uma firula...você não pode ter uma sociedade sem lei.  O que vamos fazer com o clima? O Brasil continua relativizando a legislação e toda hora afrouxando, permite que se derrube a mata ali, que os rios sejam assoreados. Agora querem petróleo no Amapá, num lugar de coral na Foz do Amazonas. Como passa na cabeça de alguém defender isso?  

EM - Qual a importância do conhecimento para o fortalecimento da democracia?

AMM - É fundamental o conhecimento, de fundo cientifico. A nossa educação tem que respeitar e valorizar a Ciência. É inacreditável a gente ter passado quatro anos duvidando de vacina. Não estou falando de A ou B, de um partido ou de outro. Porém, não é possível que a gente conviva com estas coisas, eu acho assustador.