O juiz do Trabalho Leonardo Ely manteve decisão liminar de primeiro grau, que determinou à Eldorado Brasil Celulose S.A., instalada no Município de Três Lagoas, a conceder aos seus empregados motoristas e condutores profissionais período mínimo de 11 horas consecutivas para descanso, entre duas jornadas, sob pena de multa por descumprimento da obrigação.
Ainda conforme entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região, a indústria fica impedida de prolongar o expediente normal desse grupo de empregados além do limite de duas horas diárias, sem qualquer justificativa legal. Embora a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) preveja a possibilidade de prorrogação da jornada diária dos motoristas em intervalo de até quatro horas extraordinárias, a situação, porém, não se aplica à empresa Eldorado em razão da inexistência de convenção ou acordo coletivo nesse sentido.
A simetria de posicionamento se deu perante mandado de segurança impetrado pela Eldorado Brasil Celulose, depois que a juíza Vivian Letícia de Oliveira, da 1ª Vara do Trabalho de Três Lagoas, acolheu parte dos pedidos formulados pelo Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS), em ação civil pública, que narrou reiteradas inobservâncias da legislação laboral pela indústria. Diversos documentos anexados ao processo evidenciaram expediente diário acima de 17 horas e intervalo interjornada inferior a 7 horas. “Na maioria dos casos, os motoristas foram submetidos a mais de 6 horas de prorrogação de jornada, superando, e muito, os limites estabelecidos em lei”, sustentou a procuradora do MPT-MS Priscila Moreto de Paula na ação.
Para a manutenção daquelas duas obrigações, a Justiça também levou em conta o perigo de dano decorrente do exagerado labor imposto aos motoristas, colocando em risco a integridade física e mental deles e de uma coletividade inestimável de pessoas, que ficam vulneráveis ao agravamento do risco de acidentes nas vias públicas em que trafegam caminhões carregados com toras de eucaliptos da empresa Eldorado.
“A quantidade de horas de trabalho exigida dos motoristas de caminhão afronta uma gama de direitos fundamentais prevista constitucionalmente. Viola o direito à saúde, à segurança, ao lazer, à educação, à convivência familiar, entre outros tantos. Além disso, obsta a geração de empregos e estabelece concorrência desleal com outras empresas, também do ramo da celulose e situadas em Três Lagoas, cumpridoras dos limites legais de jornada”, completou Moreto.
LIDERANÇA INDIGNA
O transporte rodoviário de carga é o setor recordista em acidente de trabalho no Município de Três Lagoas e, consequentemente, os motoristas de caminhão aparecem no topo da relação de profissionais com maior número de afastamentos motivados não somente por acidente, mas também por doenças ocupacionais.
Essa conclusão, esclarece a procuradora em trechos da ação, é reflexo direto de episódios ocorridos no âmbito da própria Eldorado. Na unidade em Três Lagoas, do total dos trabalhadores doentes e afastados – com período superior a 15 dias, quase 20% exerce a função de motorista de caminhão. E essa foi a categoria da empresa que ainda mais sofreu acidentes, em 2018, enquanto laborava. “O excesso de jornada e a ausência de intervalos para descanso são indubitavelmente fatores de risco de doenças e acidentes. Representa uma degradação de direitos tão grave que configura submissão de trabalhadores motoristas a condições análogas à de escravo por jornada exaustiva”, associa Moreto, acrescentando que o emprego precário os predispõe inclusive ao uso de drogas como alternativa para cumprir a jornada.
De acordo com o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, uma plataforma digital do MPT e da Organização Internacional do Trabalho que acompanha os acidentes laborais no país em tempo real, entre 2012 e 2018 foram registrados no Brasil mais de 100 mil notificações de acidentes relativas a transporte rodoviário de carga, considerada para essa estimativa o universo de trabalhadores com vínculo de emprego formal.
INTERVALO INTERJORNADA
A obrigação das empresas de assegurar aos motoristas profissionais o período mínimo de 11 horas para descanso entre duas jornadas de trabalho consta da CLT, em dispositivo inserido pela Lei nº 13.103/2015, que permite o fracionamento desse intervalo de tempo e a coincidência com os períodos de parada obrigatória na condução do veículo (Lei nº 9.503/1997), desde que garantidos o mínimo de oito horas ininterruptas na primeira pausa e o usufruto do tempo remanescente dentro das 16 horas seguintes.
Nesse sentido, com a nova divisão cronológica, passou-se a permitir jornadas de até 12 horas diárias e, em diversas hipóteses, sem qualquer limite de tempo, a exemplo das situações envolvendo o transporte de cargas vivas, perecíveis e especiais em longa distância ou em território estrangeiro, às quais poderão ser aplicadas regras fixadas em convenção ou acordo coletivo, conforme a especificidade da operação a ser realizada.
O novo regramento da CLT (artigo 235-C) também autoriza a prorrogação do expediente normal em até quatro horas extras por dia – mediante negociação coletiva – e prevê que não serão computados como jornada de trabalho os tempos de espera, fazendo com que a disposição integral do motorista ao labor praticamente não conheça limite.
Na ação civil pública, Priscila Moreto alerta para a inconstitucionalidade desse dispositivo, que contradiz a jornada máxima permitida pela Constituição Federal para trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, qual seja, de até oito horas diárias – sendo seis horas normais, acrescidas de duas horas extras. “Pode-se dizer, ainda, que a Lei nº 13.103 constitui uma verdadeira agenda para a promoção do trabalho indecente no país, contrariando compromissos internacionais assumidos pelo Brasil perante a ONU, a OIT e o Mercosul, dentre outras esferas”, recorda a procuradora.
DILIGÊNCIAS
Em novembro do ano passado, o MPT-MS realizou inspeções na cadeia produtiva da empresa Eldorado Brasil Celulose S.A., que procuraram avaliar as áreas atualmente utilizadas para plantio, cultivo, corte e transporte de eucalipto, os locais de armazenamento de agrotóxico, o complexo industrial e as dinâmicas laborais de seus quase 1,3 mil empregados diretos.
As diligências compreenderam extensões de eucalipto cultivadas – próprias e de fornecedores, situadas nos municípios de Água Clara, Bataguassu, Inocência Selvíria e Três Lagoas. De acordo com a procuradora do MPT-MS Priscila Moreto de Paula, que esteve nesses lugares acompanhada por dois peritos da instituição e um agente de Segurança Institucional, foram analisados aspectos relativos a acidente de trabalho, intermediação de mão de obra, terceirização de serviços, jornada e demais atividades inerentes às pessoas físicas e/ou jurídicas contratadas, de modo que posteriormente sejam adotadas medidas cabíveis quanto às eventuais irregularidades encontradas.
A Eldorado produz celulose branqueada de eucalipto, utilizada na fabricação de embalagens, produtos de higiene pessoal, materiais de escritório, de mídia impressa, de decoração e papéis especiais como os de emissão de comprovantes. Conforme o Plano de Manejo Florestal 2019, a unidade industrial e as áreas de plantio (cerca de 230 mil hectares) operam em ritmo de 1,7 milhão de toneladas de celulose por ano.